quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Discursividade sobre a possibilidade de relativizar a penhora sobre o salário e o bem imóvel

O procedimento executivo é construído em uma sistemática processual que propicia a viabilização da satisfação do direito do credor, por meio das técnicas expropriatórias.

Indiscutivelmente, o procedimento executivo é confeccionado a partir de mecanismos que garantam a execução (princípio do desfecho único), com a transferência do patrimônio do devedor para o credor, ou com a venda desses bens e a posterior transferência do crédito exequendo para o credor, até o limite do débito.

Para viabilizar os atos expropriatórios, o procedimento executivo impulsiona-se com a técnica da penhora, avaliação e depósito dos bens. Em verdade, a penhora funciona como mecanismo segregrador de bens, individualizando-os. A técnica da penhora nada mais é do que a individualização dos bens que suportarão futuramente os atos expropriatórios (adjudicação, alienação particular, hasta pública ou usufruto), com o objetivo de satisfazer o credor.

Mas existem restritições que podem inviabilizar a penhora.

O devedor, enquanto pessoa humana, é titular de garantias fundamentais que lhe permitem um mínimo de dignidade. Exatamente por isso, existem bens que estão a salvo da força coercitiva da penhora. Trata-se de bens protegidos pela legislação processual civil, que são considerados absolutamente impenhoráveis e relativamente impenhoráveis, contidos, respectivamente, nos artigos 649 e 650 do CPC.

A força da impenhorabilidade resguarda os bens que o legislador entendeu serem suficientes para a mantença e sobrevivência digna do devedor, que não obstante esteja sofrendo os efeitos perniciosos das técnicas executivas, deve ser capaz de prover o lar, mediante a utilização das suas ferramentas de labor.

O salário e as demais verbas remuneratórias contidas no inciso IV do artigo 650 do CPC são bens absolutamente impenhoráveis, salvo a disposição contida no §2º do artigo 650, que trata da incidência da pensão alimentícia. Trata-se, por óbvio, de verbas remuneratórias que permitem ao devedor prover o lar, mediante a utilização do fruto do seu trabalho.

Portanto, de acordo com o mencionado dispositivo, o salário e as demais verbas remuneratórias, de natureza alimentar, não podem ser afetadas pela força invasiva da penhora, já que lhe são atribuídas a impenhorabilidade absoluta.

Todavia, a postura adotada pelo legislador brasileiro não é a melhor.

Com o advento da Lei Federal 11.382/06, que remodelou a sistemática executiva dos títulos executivos extrajudiciais, continha, originariamente, dispositivo que possibilitava a penhora de salário, mas também os vencimentos, subsídios, remunerações, proventos, pensões, pecúlios e montepios. A referida lei continha um terceiro parágrafo com os seguintes dizeres: "Na hipótese do inciso IV do caput deste artigo será considerado penhorável até 40% do total recebido mensalmente acima de 20 salários mínimos, calculados após efetuados os descontos de imposto de renda retido na fonte, contribuição previdenciária oficial e outros descontos compulsórios".

A norma jurídica processual vetada possibilitava a penhora desses bens absolutamente impenhoráveis, no caso de ultrapassarem a quantia de 20 salários mínimos mensais, que correspondem hoje a quantia de R$10.200,00. Sem embargo de opiniões contrárias, perfeitamente possível relativizar a penhora dos referidos bens, levando-se em conta a quantia total percebida mensalmente pelo devedor. A norma processual vetada imprimiria maior efetividade no procedimento executivo, na medida em que o fator determinante da penhora dessas verbas seria decidido pelo valor total auferido mensalmente pelo devedor.

Desse modo, a interpretação do disposto no artigo 649, inciso IV, CPC, deve ser realizada de forma sistemática e não somente gramatical, de modo a compatibilizar com a teleologia do direito. Sendo assim, ao proteger o salário buscando a dignidade da pessoa humana do devedor, não se pode esquecer, todavia, da, também, dignidade da pessoa humana do credor. Nesta raia, diante de tal antinomia é importante a utilização da proporcionalidade com o fito de alcançar o real significado da norma jurídica processual.

Nesta esteira, importante trazer a baila situações do mundo dos fatos para verificar esta razoabilidade. Assim, a título de exemplo, a impenhorabilidade absoluta dos vencimentos de uma pessoa que recebe mais de R$20.000,00 (vinte mil reais) e é domiciliado em casa de R$500.000,00 (quinhentos mil reais), em razão de uma obrigação que tem caráter precipuamente alimentar para o credor e sua família, sem dúvida, não pode ser esse o escopo principal das decisões judiciais. Caso contrário, não haveria qualquer pacificação dos conflitos sociais, sem falar, no descrédito do Poder Judiciário para os seu jurisdicionados.